Acho que não é segredo pra ninguém que a Noruega é um dos países com a melhor qualidade de vida no planeta. Há segurança nas ruas, baixa taxa de desemprego, além de estar no topo da lista dos países mais igualitários da atualidade. Pelo menos as (poucas) notícias que vemos na mídia brasileira não medem palavras para descrever este país do norte da Europa. Contudo, apesar da riqueza material, a pobreza espiritual reina.
RIQUEZA MATERIAL
Essa riqueza material é muito óbvia, principalmente se você vêm de um país desigual como o Brasil. Quase não há moradores de rua e até mesmo a pessoa mais pobre tem um lar. Se você estiver sem um centavo no bolso e sem alimentos em casa, e ainda por cima sem condições de pagar o aluguel/ter um lugar pra morar, pode ter certeza que o estado norueguês te ajudará de alguma forma. No início dos anos 90, o governo criou um fundo (Oljefondet, “fundo do petróleo”) para investir a receita da exploração de petróleo e, atualmente, há, nada mais, nada menos, do que cerca de 10 trilhões de coroas norueguesas (aproximadamente 1 trilhão de dólares). Se algo extraordinário acontecer e o país quebrar, há praticamente dinheiro suficiente para continuar a vida meio que normal por um tempo.
Isso não quer dizer que ninguém tenha dívidas, porque há, sim, muita gente endividada, mas a pobreza que vemos no Brasil eu, particularmente, até hoje nunca vi por aqui. Os dois países têm histórias diferentes, tamanhos diferentes e população com mentalidades distintas, por isso é meio injusto ficar comparando um com o outro, mas ao mesmo tempo é interessante ver o quanto o Brasil poderia ter uma condição material melhor se não fosse pela má administração dos recursos.
Enquanto no Brasil é comum várias pessoas viverem em uma casa ou até mesmo em um só cômodo, pela falta de recursos econômicos para uma moradia mais confortável, na Noruega eles prezam o espaço. É normal e esperado que cada criança tenha seu próprio quarto, além de também muito comum ver crianças andando por aí com eletrônicos custando os olhos da cara. Já no Brasil, a população não tem um bom poder de compra, os salários são baixos e praticamente tudo é parcelado, o que é raro na Noruega. Parece que só parcelam quando é algo muito caro mesmo, tipo um carro, uma casa, ou eletrônicos com um valor altíssimo. E ter uma casa é algo que todo norueguês almeja: 3 a cada 4 residências não são alugadas, mas sim propriedade do morador.
Nem tudo é o que parece
Ao ler essas coisas, você deve pensar que viver na Noruega é o paraíso na Terra, pois já que quase ninguém passa fome, o governo ajuda a população necessitada, há segurança e as pessoas compram em vez de alugar casa, a Noruega deveria ser o lugar com a população mais feliz do mundo inteiro. No entanto, a realidade é outra: o número de suicídios aumenta a cada ano no país, até mesmo o ministro da saúde, Bent Høie, afirmou ter fracassado nessa área. Ele apresentou em 2014 um plano de ação para conter esse número, mas em vez de diminuir, aumentou. A discussão sobre suicídio ficou muito mais intensa no começo de 2020, depois que Ari Behn, um escritor e artista famoso no país, também ex-marido da princesa da Noruega, Märtha Louise, tirou a própria vida no Natal de 2019, aos 47 anos.
Por que as pessoas estão se suicidando se a Noruega é um dos melhores países no mundo para se viver?
Tem, obviamente, alguma coisa errada. O suicídio está diretamente ligado à depressão, então, sob meu ponto de vista, quando alguém decide tirar a própria vida significa uma extrema desconexão com a essência. Ninguém feliz, de bem com a vida e com uma mente saudável decide acabar com a própria vida. E vivendo num mundo materialista, onde o foco está no que você tem e não no que você é, muitas pessoas simplesmente não aguentam a pressão. Nem mesmo na Noruega.
Analisando a qualidade de vida entre o Brasil e a Noruega, acho que seria mais intuitivo pensar que o índice de suicídios é maior no Brasil, por causa do alto índice de violência urbana, desigualdade social e milhões de pessoas sem as necessidades básicas cobertas. Porém, lá o índice é de 6,1 por 100.000 habitantes (2016). Na Noruega, onde há segurança, pouca desigualdade social e uma vida confortável, o índice de suicídios é de 12,9 a cada 100.000 habitantes (2018), nada menos que o dobro do Brasil. Fiquei sabendo de mais casos de suicídio em poucos anos na Noruega do que ouvi no Brasil em mais de duas décadas vivendo lá.
POBREZA ESPIRITUAL
Quando as necessidades básicas (vida exterior) do ser humano é suprida, é mais óbvio perceber o vazio existencial das pessoas (vida interior). O assunto religião/religiosidade é, na Noruega, algo bem peculiar. 70% da população (2018) pertence à Igreja da Noruega (Den norske kirke), que é de tradição luterana, mas na prática a realidade é bem diferente.
Em maio de 2020 saiu a notícia de que a porcentagem de noruegueses que acreditam em Deus caiu de 53% em 1985 para 30% em 2020. 48% afirma que não acredita em Deus, enquanto 21% não tem certeza (não sei o que aconteceu com o 1% restante, pois não foi especificado).
O curioso é que no mesmo dia da publicação da notícia eu participei de uma celebração de batizado aqui pela primeira vez. Foi muito interessante observar os convidados para ver se eles participavam da cerimônia de alguma forma, através de orações, músicas, essas coisas. Todos receberam um folhetinho com salmos, músicas e orações que seriam parte da cerimônia, mas fiquei muito confusa ao ver que praticamente todo mundo entrou mudo e saiu calado. Parecia que ninguém sabia realmente o que dizer em resposta ao pastor, nem conheciam as melodias das músicas.
Ao nos reunirmos do lado de fora depois da celebração, o assunto chegou em religião e religiosidade e perguntei ao avô do bebê se o pessoal ali reunido, inclusive os pais da criança, acreditavam em Deus/algo maior, não foi a resposta. O interessante é que, na cerimônia, o pastor perguntou aos pais se eles aceitavam criar a criança na fé cristã, e a resposta dos dois foi sim. Eles não são religiosos, nem espirituais, mas fazem batizados, casamentos e outras cerimônias na igreja simplesmente porque é tradição. Se todo mundo fez, poucas pessoas têm coragem de sair fora da curva e não fazer. Apesar de apenas 30% dos residentes da Noruega afirmar acreditar em Deus, ou em algo maior, como você queira chamar, a porcentagem de batizados (dåp) está por volta dos 60%. Os números de crisma (konfirmasjon) são impressionantes quando levamos em conta a falta de fé na população: 56% dos jovens de 15 anos decidiram se crismar na igreja (2018).
A importância da crisma na Noruega
Da mesma forma que existe casamento religioso e civil, há também a crisma religiosa (kirkelig konfirmasjon) e civil (humanistisk konfirmasjon). Crismar é tão importante para os noruegueses quanto fazer 1ª comunhão para os católicos, e é tradição celebrar com um grande jantar para a família e parentes depois da cerimônia. Nessas festas, os convidados dão dinheiro de presente para o crismando, o que no final da festa se torna uma pequena fortuna (já ouvi falar de crismando que ganhou mais de 50.000 kr (1 kr = R$ 0,64), geralmente é menos do que isso, mas tem gente que ganha mais também.
Por mais que os jovens não acreditem em Deus, ninguém quer ficar sem crismar, afinal de contas que jovem de 15 anos não gostaria de ganhar dinheiro? Assim sendo, se não é para crismar na igreja, que seja uma crisma civil/humanista. O que não dá é ficar de mãos vazias, nem ser o único da turma que não vai participar. Já conversei com vários noruegueses sobre o assunto e a grande maioria, quase que unanimemente, crismou pura e simplesmente por causa do dinheiro. Não seria isso um exemplo claro de pobreza espiritual e riqueza material?
Os noruegueses são muito lógicos, eles acreditam no que podem ver e assuntos espiritualistas/alternativos são ridicularizados. É claro que há exceções, mas eu vi mais gente criticando quem gosta de assuntos espiritualistas do que gente afirmando que gosta. Quando a princesa da Noruega, a mesma mencionada anteriormente, assumiu o relacionamento com um xamã em 2019, a mídia norueguesa não mediu palavras para criticá-los.
Há alguns anos, recebi a visita de uma ex-colega de trabalho e, conversa vai, conversa vem, ouvi que “assuntos alternativos são a maior bobagem, não tenho o menor respeito por quem acredita nessas baboseiras. Pra mim, é o fim”. No sul da Noruega, onde há maior concentração de pessoas religiosas, pode ser que seja mais aceito (ou não, pois geralmente quanto mais religiosa, menos aberta a outros pontos de vista), mas como ainda não visitei a região não posso afirmar com certeza.
A PIRÂMIDE DE MASLOW
O psicólogo Abraham Maslow criou, em 1943, uma pirâmide representando uma hierarquia de necessidades do ser humano, ilustrada na imagem abaixo. Sua intenção, desde que iniciou sua carreira profissional, era encontrar o sentido da vida, ele “queria descobrir o que poderia tornar a vida cheia de propósito para as pessoas (inclusive ele) nos Estados Unidos moderno, um país onde a busca por dinheiro e fama parecia ter eclipsado qualquer outra aspiração autêntica ou interior” (School of Life).
Na Noruega, assim como nos Estados Unidos de Maslow, a busca por dinheiro é inegável e as pessoas são, sim, preocupadas com status social e com as aparências, por mais que a sociedade pareça igualitária pra quem está do lado de fora. A busca pela fama, no entanto, não é tão almejada pelo norueguês, por causa da Lei de Jante (Janteloven), uma “lei não escrita” que diz que você não deve pensar que tem algo de especial, nem que você é melhor que ninguém, muito menos pensar que sabe mais, ou que pode ensinar alguma coisa a alguém, dentre outras coisas. Embora não seja oficial e muitas pessoas nem saberem do termo Janteloven, essas crenças fazem parte do inconsciente coletivo dos noruegueses, assim como a síndrome do vira-lata é uma crença do inconsciente coletivo dos brasileiros. Os noruegueses podem até almejar a fama dentro de si, mas como não é socialmente aceitável, nem mesmo encorajado, eles não expressam suas vontades porque simplesmente não querem ir contra a tradição.
Analisando a pirâmide de Maslow na sociedade norueguesa, é fácil perceber que as áreas de Fisiologia e Segurança são cobertas pelo estado. Já no quesito Amor/Relacionamento, as coisas começam a desandar um pouco. O isolamento social já era normal aqui antes mesmo da pandemia. Além do clima não ajudar e ser inverno por quase metade do ano, fazendo com que as pessoas não tenham o costume de se reunir espontaneamente por aí, as famílias não são grandes como no Brasil e a independência é muito valorizada. Muitos jovens saem de casa na faixa dos 16-18 anos para estudar ou trabalhar em outras cidades. Um grande número de noruegueses sofrem com a solidão, vira e mexe aparece a notícia que uma pessoa foi encontrada meses, semanas, ou até mesmo anos depois de sua morte, em sua própria residência. Ninguém deu falta da pessoa antes. Há muita gente de meia idade sofrendo com a falta de um parceiro de vida, principalmente as do sexo masculino. Não coincidentemente, 2/3 dos suicidas são também do sexo masculino, sendo 47 anos a idade média daqueles que decidem tirar a própria vida (ambos os sexos), e, não coincidentemente, a mesma idade do Ari Behn quando cometeu suicídio.
Daí temos a área da Estima, descrita como “autoestima, confiança, conquista, respeito dos outros, respeito aos outros”. É a área que poderia ter dado certo por aqui, se não fosse, mais uma vez, a força da Janteloven no inconsciente coletivo. “Você não deve pensar que tem algo de especial, nem que você é melhor que ninguém, muito menos pensar que sabe mais, ou que pode ensinar alguma coisa a alguém”. Como ser feliz de verdade quando a sociedade ao seu redor diz que você não vale nada? Ouvi muitas pessoas comentarem após o suicídio do Ari Behn sobre como a mídia norueguesa o esculachou durante toda a sua carreira, por ele ser um tipo excêntrico, um artista mesmo, criativo e com necessidade de se expressar. A ironia é que, após sua morte, não faltou palavras para dizer o quanto ele era especial e uma perda para o país. De deixar qualquer um confuso.
Ao mesmo tempo que entendo de onde vêm esse jeito de ser dos noruegueses, também acredito que somos criadores e únicos responsáveis pela nossa própria felicidade. Ser feliz é uma escolha que fazemos todos os dias de nossas vida, apesar das dificuldades. Por isso sou tão apaixonada pelo autoconhecimento e pela solitude, que é diferente de solidão. Solidão é se sentir sozinho e desconectado de tudo, solitude é a alegria em estar em sua própria companhia, encontrar o seu lugar no mundo mesmo sem ninguém ao seu lado.
CONCLUSÃO
Para terminar, a conclusão que eu tiro é que a situação material e espiritual da Noruega só mostra que a verdadeira felicidade vem de dentro. O conforto exterior não é a única coisa importante, se você não se sente bem com quem você é de verdade, se não gosta de sua prórpria companhia, se não conhece e reconhece seus talentos, suas virtudes e vontades de seu coração, como poderá chegar ao topo (da pirâmide de Maslow), a realização pessoal?
E você, concorda?
7 comentários
[…] Vivendo aqui aprendi que o verbo tro deve ser usado com cuidado. O tema religião não é abertamente discutido entre as pessoas como é no Brasil, por isso é melhor evitar o assunto. Já ouvi inclusive a expressão “tro skal du bare gjøre i kirken” (acreditar é algo que só se deve fazer na igreja), que é bem engraçada mesmo, né? Quer dizer que se você não tem certeza é melhor ficar calado, e também que ninguém quer ouvir sobre a sua fé. […]
[…] mas, por outro lado, o indivíduo não tem espaço para fazer “sua estrela interior brilhar” (leia aqui a partir da “Pirâmide de Maslow” para entender melhor o que quero dizer). Isso afeta, […]
[…] Noruega: riqueza material, pobreza espiritual […]
Não concordo com nada. Inclusive ficou focada no tema religião. Estou morando faz alguns meses em Oslo,cheguei no verão e estava tudo maravilhoso até chegar o inverno e a escuridão… Qualquer um que tem um pouco de informação sabe que a falta do sol não ocorre a síntese da vitamina D, e a falta dessa vitamina trás vários prejuízos ao nosso corpo,como por exemplo; problemas de coração/ossos,desânimo, depressão entre outros…inverno acabamos ficando mais em casa, isolados e acredito que o povo aqui é muito reprimido nas emoções tbm (medo de julgamento) Como eu disse, é bom tentar olhar o mundo além de uma crença/religião.
Agradeço por compartilhar seu ponto de vista, Fernanda. Concordo com tudo o que você disse a respeito da vitamina D, inclusive há adição de vitamina D em alguns alimentos (leite, manteiga) aqui, e os noruegueses também têm o costume de tomar tran (óleo de fígado de bacalhau) todos os dias para elevar os níveis da vitamina no sangue. Sobre a repressão das emoções, escrevi sobre o tema no post sobre a Janteloven (Lei de Jante), não sei se você viu.
O que eu quis com este texto foi mostrar o outro lado, uma reflexão além do óbvio. Escrevi baseando-se nas minhas impressões e experiências vivendo aqui, e tudo bem você não concordar/ter uma impressão diferente. Lendo seu comentário me lembrei de mim mesma quando cheguei na Noruega, seria interessante ver se depois de alguns anos morando aqui você teria a mesma opinião. Te desejo tudo de bom e que você seja feliz em Oslo.
Tem um filme norueguês que explicita justamente o tema ” O homem que incomoda “.
Parabéns pelo site. Só lamento pelos países nórdicos estarem abarrotados de músicos que cantam em inglês -o que nos leva a umas das características mentais, citadas no texto, desse povo – o pragmatismo, no caso o comercial.
Conheço alguns artistas que cantam na língua da terra e… são línguas lindíssimas.
Alexandre, muito obrigada pelo comentário! Eu nunca tinha ouvido falar neste filme, tive que procurar depois de ler seu comentário e assisti há poucos dias. Apesar de ser um filme sem muitas falas, o impacto dele foi imenso. Tem realmente muito a ver com o que escrevi aqui neste post. Há tanta, tanta coisa que eu queria falar sobre ele que acho que vou ter que escrever um post. Embora o filme seja bem distópico e há um exagero ali na questão da frieza da população, há, sim, muitas verdades, inclusive já presenciei algumas cenas pessoalmente. Acredito que muitos latinos veem ou já viram a Noruega da forma apresentada no filme, já que somos um povo bem mais emotivo/dramático.
Sobre música escandinava, eu fiz dois posts aqui no blog, um com bandas e artistas que cantam em bokmål (norueguês “padrão”) e outro com bandas e artistas que cantam em diferentes dialetos de norueguês. Quais artistas noruegueses/escandinavos você conhece e recomenda? Gosto bastante de ouvir música em norueguês e sueco, mas não conheço muitos artistas dos outros países escandinavos.